Mary Olivetti: maturidade musical que vem de berço

Mulheres sonoras entrevista Mary Olivetti

Muito mais que compartilhar músicas com o mundo, as histórias também fazem parte de uma artista e são essenciais para compreendermos o porquê elas fazem o que fazem. A conexão com a música acontece de maneiras singulares para cada uma, e para Mary Olivetti, essa conexão começou cedo e com alto gabarito. 

Filha de ninguém menos que Lincoln Olivetti, considerado um dos maiores músicos do país e pai do boogie brasileiro,  e Claudia Olivetti, cantora e compositora,  Mary cresceu vendo grandes nomes da música brasileira, como Rita Lee e Tim Maia – do qual ela é afilhada, diga-se de passagem-, frequentando a sua casa, mais precisamente o que poderíamos chamar de “o metro quadrado mais valioso dos anos 80”: o estúdio de seu pai. E acompanhar tudo isso de perto contribuiu para que ela aprendesse desde cedo a apreciar uma boa música. 

Mary Olivetti com os discos gravados pelos seus pais.

Com uma adolescência regada a muitos discos, logo as pistas começaram a chamar sua atenção com a popularização da EDM nos anos 2000, e aí aconteceu o que a gente entende muito bem: a conexão com o universo da música eletrônica. A partir daí, a vida clubber virou rotina: frequentava festas, viajava para conhecer clubs e outros artistas, até que, em 2002, se jogou na discotecagem sem saber nada, só deixando o amor pela música falar mais alto: “Não sabia o que era DJ, sabia o que era música”, comenta. E de fato, isso era tudo que ela precisava saber. 

O desenvolvimento de sua carreira foi tomando forma à medida que crescia a demanda por DJ’s mulheres nos line ups, e desde então, 19 anos de carreira se passaram e Mary conta com um currículo extenso. Amante da House Music, já passou por grandes clubs pelo país como Pacha, Laroc e Green Valley; festivais importantes como Rock in Rio e Tomorrowland; abriu shows para grandes artistas como Solomun, David Guetta, Erick Morillo, Calvin Harris e uma lista infindável de nomes; foi eleita a melhor DJ feminina de House Music no Brasil pela Sound Magazine, e marcou presença também em Ibiza, Miami, Barcelona e Buenos Aires. 

E engana-se quem pensa que ela já se deu por satisfeita quando o assunto é música. Seu trabalho se estende para áreas como Branding Musical, Rádio – é membro fundadora da Rádio Ibiza há 13 anos – e ainda comanda o Citronela Rádio, trazendo várias sonoridades com influências da Mãe África, além de, claro, ser uma formadora de opinião, porque repertório é o que não falta.


Muito além da versão artista, Mary também tem a versão mãe que ocupa grande parte de seu tempo, o que a levou a investir em outros meios para continuar sendo feliz com o que ama para além das pistas: fez faculdade de Produção Fonográfica, o que abriu caminhos para que a produção musical se tornasse rotina. E que sorte a nossa!

Em 1 ano de muita dedicação, ela já conta com grandes lançamentos como um remix para ninguém menos que Rita Lee da música Cor de Rosa Choque – que foi superelogiada pela própria- e uma releitura da faixa Black Coco – primeira produção de seu pai- dando um toque especial com o vocal da cantora carioca, Mahmundi.

Eu vou me virando”, diz Mary quando o assunto é arrumar tempo para produzir, “Viro a noite pelo menos uma vez na semana”. Tempo suficiente para ela explorar todo seu background musical; os resultados falam por si só.

Toda essa experiência dá a Mary um universo inteiro de possibilidades para desbravar e mostrar ao mundo todas as influências que a trouxeram até aqui. “Eu me considero uma novata”, diz ela, que tem uma listinha de ideias para transformar em mais sucessos pela frente.

Confira mais um pouco dessa trajetória a seguir:

Você se jogou na discotecagem mesmo sem saber nada. Quais foram seus maiores desafios ao longo desses anos?

Quando a gente inicia em uma carreira seja ela qual for, é normal não termos domínio da coisa, a gente rala pra domar o assunto e fazer bem feito. Digamos que meu maior desafio no início tenha sido captar a técnica sem ter frequentado qualquer curso (eles não existiam!). Durante muito tempo me aperfeiçoei a cada noite, e na realidade a gente nunca chega e um limite onde fala pra si mesmo “pronto!, agora eu sei tudo”, a cada gig conhecemos um novo macete, e depois a cada gig queremos melhorar o desempenho do macete. 

Sobre desafios ao longo dos anos, posso te dizer que foram muitos porque são muitos anos! O maior deles foi conciliar minha vida noturna com a diurna. Eu adoro a noite mas posso me considerar uma pessoa “do dia”, o que se torna um paradoxo para qualquer DJ. 

Tendo tantos anos de carreira e passado por palcos importantes no Brasil e no mundo, quais aspectos você considera importantes na construção de um feeling aguçado para a pista?

Eu sempre toquei para as mulheres selecionando pra elas, sorrindo e olhando nos olhos delas. Acredito que nós sejamos a maior e melhor parte da festa. Se elas estão felizes, todos estão e eu mais ainda.

Agora falando de produção musical, você teve lançamentos importantes como o remix para a Rita Lee e para o Fábio Santana. Do momento em que você decidiu se dedicar à produção, como tem sido o seu workflow na hora da criação?

Eu tenho pouco tempo disponível para estúdio no meu dia e como boa virginiana procuro me organizar ao máximo para que todas as metas do ano sejam alcançadas. Tenho uma lista extensa de músicas que desejo produzir, porém procuro iniciar uma nova faixa somente quando a anterior está finalizada. Separo muitas referências no dia-a-dia e quando me sento no estúdio para produzir procuro ser bastante objetiva. Por fim, estudar é o mais importante e eu não paro.

Seu último lançamento é uma releitura da música Black Coco, que foi produzida pelo seu pai. Por que você escolheu essa música e o que você trouxe para a sua versão? 

Esta música sempre foi especial pra mim e tudo nela me chama atenção: o groove, o ar kitch, a tropicalidade, os timbres. Mas se ela é especial pra mim, para meu pai foi muito mais. Este foi o primeiro hit de sua carreira, pontapé inicial para que ele conseguisse inúmeros outros trabalhos grandiosos. Acredito que esta obra tenha um punhado de sorte intrínseca, então, como diria minha mãe: ”vamos nessa que tá bom à beça”!

Para o novo arranjo regravei todos os instrumentos, remoldei toda a estrutura e atualizei sua sonoridade para as festas hype de hoje. Não é uma música de pistão, é uma música de festa na praia, de rolê de jangada, de verão nordestino, carioca (e por quê não europeu?!). Mahmundi aceitou meu convite e me fez acreditar na potência de meu trabalho, sou grata à essa mina, cantora das grandes, referência de muitas e muitos, talento puro.

Você se considera uma eterna aprendiz… e quais foram os aprendizados valiosos que você leva para a vida enquanto artista? 

Os aprendizados seguem paralelos aos ensinamentos que recebi desde criança. Conexão – saber falar a língua de todos os grupos sociais e transitar por todas as camadas de forma naturalíssima. Humildade – ser tão cordial com o garçom quanto com o sócio do club (e por vezes até mais). Fama – ninguém é melhor do que ninguém. E sigo aprendendo!

Mesmo com uma rotina corrida, você ainda se dedica a outros trabalhos envolvendo música e para isso é preciso ter muita pesquisa. Como você faz essas pesquisas e de que forma isso influencia no que você faz?

Eu tenho um circuito de playlists que passeio semanalmente, muitas são editoriais e outras de amigos que aprecio a pesquisa. São destas viagens musicais que surgem minhas maiores referências para minhas produções. 

A cena eletrônica hoje está mais promissora para as mulheres do que anos atrás, e ainda temos um longo caminho a percorrer. Na sua opinião, o que pode ser feito para alcançarmos uma cena mais igualitária no Brasil?

Acredito que o número de mulheres no ofício DJ ainda seja reduzido para podermos ter mais igualdade nos line-ups, chart e em decorrência dos cachês. Digo “ofício” pois existem muitas (e muitos, no masculino também) que ainda não encaram o caminho das pistas como profissão, isso muda tudo, inclusive os números.

Estamos em constante evolução e eu gostaria muito de ver um gráfico de estatísticas (vou ligar pra Claudia Assef!). Hoje se tornar DJ é um passo mais simples do que há 20 anos atrás, existem muitos facilitadores e o caminho da profissão é mais claro, pode-se seguir uma cartilha de básicas e boas práticas que antes ainda não havia sido escrita. Não é tudo, mas já é um bom começo. Foco, meninas, estamos indo muito bem, estamos de parabéns.

E para fechar: quais conselhos você daria para as artistas que estão começando a construir sua trajetória na música?

Derrubem o limite entre divisas de países e continentes. Se relacionem com pessoas de todo o planeta. Mandem e-mails, mandem músicas, se apresentem e se preciso traduzam no Google, mas não deixem de escrever. Demorei para aprender que eu não precisava ser DJ só para o Brasil. O mundo é um só, saiam do conforto porque a estrada pode ser bem maior do que imaginamos.

Muito obrigada Djane Mag pelo espaço, um grande beijo e boa sorte pra todas nós!