Cecilioui: música, política e transformação

Contar a história de mulheres na música não é apenas escrever um amontoado de palavras para espalhá-las ao mundo. Conhecer a fundo a jornada de cada artista é também uma fonte de conhecimento em muitas frentes, seja pessoal ou profissional, e que nos ajuda a compreender que todas nós temos pontos em comum, ainda que as experiências de vida sejam distintas.

E hoje vamos falar sobre mais uma artista goiana, Cecília Simão, mais conhecida como Cecilioui. Goiânia é um terreno fértil para a cultura alternativa como um todo, e se tratando de música eletrônica, também tem exportado cada vez mais artistas de variados gêneros musicais. É nesse cenário que ela, naturalmente, iniciou sua trajetória como DJ há 7 anos e vem acumulando uma bagagem cada vez mais rica e multicultural.

Sua relação com a música vem desde criança quando tocava instrumentos, que anos mais tarde se transformou numa banda de Punk formada por meninas, e depois vieram as raves regadas a muito Psytrance e Techno, onde a música eletrônica começou a virar rotina. 

As tradicionais festas entre amigos foram a porta de entrada para seu contato com os decks, que logo a levaram a ser um nome presente em várias festas locais, mostrando toda a sua versatilidade musical – de música brasileira ao Psytrance – que agora se estrutura no Techno. 

Hoje a artista já acumula passagens em eventos importantes como o Universo Paralello – onde já dividiu palco com grandes artistas como Caetano Veloso, Lenine e muitos outros; Clubs como D-EDGE; e é um nome sempre presente na cena goiana fazendo parte de grandes eventos como Festival Bananada, Vaca Amarela, Hipnótica, Shadow e Lost & Found.

Para além de artista, Cecilioui, que é Arquiteta, também tem seu lado como Produtora Cultural, sendo uma das idealizadoras do Bloco do Mancha, que se tornou um dos blocos de Carnaval de rua mais aguardados da cidade anos após ano. Ela também é produtora do cantor e compositor Bnegão, com quem já tem anos de parceria.

Cecilioui tocando no Bloco do Mancha em Goiânia, do qual é idealizadora.

Recentemente a artista teve seu projeto 25 anos de música eletrônica em Goiás aprovado com nota máxima pela Lei Aldir Blanc, cujo objetivo é mostrar a riqueza da cena eletrônica no centro do país e homenagear os artistas goianos. 

Todo o seu envolvimento com a arte contribui para um posicionamento político consistente em favor da cultura e contra qualquer tipo de desmonte que impeça a arte de ser o que é. Em 2016, ela participou do Ocupa MinC no Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, que foi uma das maiores ocupações no país contra a decisão do então presidente Michel Temer em extinguir o Ministério da Cultura. 

Arte é política e Cecilioui sabe muito bem como mostrar isso para o mundo, seja através dos decks ou dos bastidores. Confira mais sobre nosso bate-papo a seguir:

Nesses 7 anos de carreira vemos que você já construiu um nome forte nas noites de Goiânia. Como foi esse processo para se tornar a artista que você é hoje?

Bom, nem eu sei direito como isso aconteceu. Comecei a tocar em festas de amigos, a convite deles mesmo, despretensiosamente, no começo e mal sabia manusear os equipamentos, meio que caí de paraquedas e não esperava que fosse virar o meu principal campo de atuação. Foi tudo muito orgânico, na verdade, acho que um pouco de sorte de estar frequentemente no lugar certo e na hora exata.

Eu sempre fui entusiasta da cultura e da música, frequento festivais e shows desde muito nova graças a minha mãe que sempre me acompanhava, e quando maior de idade me encantei com a música eletrônica e comecei a ir em tudo que é rave, tanto de Psytrance quanto de Techno… daí calhou de ir conhecendo pessoas do meio artístico e ampliando os contatos, fui evoluindo nas mixagens, e aí fui percebendo que as pessoas gostavam realmente do meu trabalho. E considero o festival Universo Paralello e o Bloco do Mancha como pontos importantes da minha carreira que me trouxeram mais visibilidade.

Falando em construção, percebemos que são poucas as iniciativas para fomentar a cena local para as artistas mulheres – seja para aumentar mais a presença delas no line ups ou até mesmo criar uma movimentação entre elas para fazer algo a respeito. O que você acha que falta para que esse movimento se torne uma realidade cada vez mais forte?

Acredito que falta muito e que não tem uma fórmula mágica pra virar essa chavinha, tá mais pra uma construção social mesmo. Eu só vejo festas com line up quase todo ou completamente feminino sendo anunciadas quando está próximo ao dia 8 de março. Honestamente, acho um desaforo. 

Tenho muitos amigos que produzem eventos e sempre que posso dou esse toque, sabe? Aqui em Goiânia tem um coletivo com essa proposta de ativismo chamado Selvática, uma ótima referência de iniciativa para revolucionar o mercado nesse sentido. Da minha parte tento sempre me inserir cada vez mais na cena a fim de furar essa bolha de rolês predominantemente masculinos. 

Sempre que posso indico uma mana pra tocar, e como produtora cultural procuro sempre fomentar o trabalho de outras mulheres e também evito ir em festas que não incluem mulheres no line up.

Cecilioui na gravação para seu projeto “25 anos de música eletrônica em Goiás.”

Seu projeto inscrito na Lei Aldir Blanc foi aprovado com nota máxima e você conseguiu fazer uma superprodução nas lives com músicas de artistas locais e uma variedade de gêneros. Qual a importância desse reconhecimento e como você acha que projetos como esse impactam nossa cena?

Bem, logo que saiu o edital, como artista independente em meio a uma pandemia, vi ali uma grande oportunidade de me reerguer. Me dediquei e estudei muito, foram várias noites sem dormir com o intuito de alcançar a maior pontuação possível para que meu projeto fosse aprovado. Quando saiu o resultado foi um dos momentos mais felizes da minha vida, fiquei em êxtase pela possibilidade de viabilizar através do Estado um projeto que eu já tinha em mente há algum tempo, e ainda conseguir gerar trabalho para colegas da área – que deleguei como minha equipe – que também foram bastante afetados pela pandemia. 

Eu sou muito fã da cena eletrônica de Goiás, foi uma escola pra mim, nada mais justo que homenageá-la. Eu procuro honrar quase tudo o que é da nossa cultura regional, tenho orgulho de onde vim, e apesar de Goiás ter esse estereótipo do sertanejo muito forte, a nossa cena alternativa e underground não deixa a desejar.

Temos um dos festivais mais incríveis do Brasil em termos de diversidade e superprodução: o Festival Bananada. Sediamos também as primeiras edições do Festival Universo Paralello (responsável por ditar os rumos do Psytrance no Brasil) que é hoje o maior do gênero na América Latina. Tínhamos a Fiction, uma das boates mais massas do país e que marcou a geração da época. Além de muitos produtores de música eletrônica geniais! Não é de se celebrar? No meu projeto eu quis contar um pouco dessa história nos meus sets.

Falando um pouco sobre referências, quais são os/as artistas que mais influenciam no seu trabalho?

Nossa, são muitas! De Blancah, D-Nox, Anna, Amanda Chang às divas pop Madonna e Lady Gaga. E também quem muito me inspiram diariamente são os meus conterrâneos, como já mencionei, a cena eletrônica goiana é onde fiz escola. Iago Caetano, LuizFribs, Marcal, Talking Machines… e como produtora cultural também não posso deixar de citar os DJs/produtores que fazem o role acontecer: Morganna e Alex Justino (Lost and Found/ Nin92wo), Kobot (Hipnótica); Swarup e Ekanta (Universo Paralello Festival); Hosben, Lucas Arr e Murça (Room Noise). Eli Iwasa também é uma super musa inspiradora, tem uma carreira sólida também em produção cultural, com a Caos em Campinas, e apesar de nunca ter lançado tracks autorais, suas mixagens e os sets são sempre impecáveis e marcantes.

Você tem a deusa Rita Lee como uma grande fonte de inspiração, não é? Quais qualidades ela tem que toda artista deveria se inspirar na sua opinião?

Muito, é uma artista que conheci ainda pequena porque minha mãe curtia muito e tinha os discos de vinil. Acho que autenticidade é o que nela mais me inspira e o que eu percebo que é peça chave em várias outras artistas que conseguem se destacar, ela tem algo que é só dela, uma assinatura. E o fato de ser mulher naquela época sem nenhum pudor de ser exatamente o que ela era, sem recato e sem moldes, mesmo com as críticas e a pressão social de uma época muito difícil pras mulheres. 

Acredito que ela abriu muitas portas para outras artistas. Admiro toda a trajetória, biografia e carreira dela, as letras, as melodias, os figurinos, o cabelo, as capas dos discos… Rita, eu te amo!

Vivemos em um momento bem difícil para a arte como um todo, com um governo que tenta minar todo tipo de acesso à cultura. Como você acha que podemos unir música e política para conscientizar mais pessoas e evitar um desmonte cada vez maior?

Sinceramente, já estão unidas. Não existe um cenário onde se trabalha com/ pela cultura sem que isso não seja um ato político. A música e a dança te libertam, expandem sua consciência, assim como o teatro, a leitura, o cinema, as artes no geral. Te tornam um ser mais crítico, te fazem pensar, conviver melhor com a diversidade e as diferenças. 

O bolsonarismo é o contrário de tudo isso, é toque de recolher, é preconceituoso, careta e ultrapassado. Mas ainda assim eu vivi pra ver o dono de uma das boates mais famosas do país se posicionando a favor desse desgoverno. Esse que não serviu pra vacinar a população a tempo de evitar tantas mortes e o fechar das portas dos shows, baladas e festivais por tanto tempo. 

Acredito que agora é a hora de quem trabalha com música se impor cada vez mais, até por ser um momento muito propício para esse mercado, tá todo mundo eufórico pra sair de casa por conta do isolamento social. É um bom momento para produzir, fomentar a cena do jeito que você pode, incluir cada vez mais os negros, periféricos, LGBT’s e minorias nos eventos; se informar e passar informação adiante, ir atrás e fortalecer iniciativas como os editais da Lei Aldir Blanc. Se possui um selo ou uma festa, tenha um corpo de promoters o mais diverso possível, ou um posicionamento de marca como o da Mamba Negra, por exemplo, algo que comunica e reforça ideais como o antifascismo, antiracismo, feminismo e anti-homofobia.

Cultura e arte também é comunicação, e o artista, até mesmo aquele artista emergente, independente, tem esse poder de influenciar comportamentos em maior ou menor escala, e direcionar o seu trabalho para onde você quer que a sociedade caminhe… E votar! Votar certo!

Cecilioui no Ocupa Minc, no Rio de Janeiro, durante a ocupação contra a extinção do Ministério da Cultura em 2016.

E para fechar: quais conselhos você daria para as manas artistas que estão na luta pelo seu espaço nesse mercado?

Olha, se alguém tiver um conselho tipo receita de bolo me avisa que eu também quero saber! Mas vou dizer uma coisa que um grande amigo já bastante experiente no mundo da música me falou um dia e que toda vez que eu me sinto invalidada ou meio perdida começo a repetir feito mantra: “caminhe, e o caminho aparecerá”. Seguir o que você acredita e estar sempre em movimento é um clichêzão, mas acreditem: dá certo!

Procurar estar perto de pessoas que têm ideais parecidos com os seus, buscar aprender cada dia um pouquinho mais da sua área, e também passar adiante o que você já tem de conhecimento. Eu fui muito bem acolhida por outras mulheres quando entrei nessa, sou muito grata e procuro acolher também; à medida que a cena cresce a gente se movimenta junto com ela, sabe? Daí você vai se descobrindo e evoluindo, as coisas vão acontecendo. Se você trabalha com música no Brasil, ainda por cima sendo mulher, a coragem você já tem, o resto vai se encaminhando.

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